11.10.10

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Caderneta de cromos

Andávamos pelo final dos anos 80, princípios dos 90, quando o meu avô me explicou qual seria uma das suas fontes de rendimento para esse ano. O Estado, entupido com dinheiros europeus, pagava-lhe umas dezenas de contos por cada pé de oliveira que arrancasse, em troca da "reconversão" do olival em culturas mais "produtiva", como, por exemplo, o eucalipto.

O meu avô, agricultor de toda a vida e de sol a sol, aceitou. Já tinha dobrado os 80 anos, o corpo cansado já não era capaz de recolher sozinho a azeitona de todas as oliveiras, não havia a quem pagar pelo trabalho. E ainda lhe davam os pés de eucalipto. Que por sua vez cresceria rapidamente, com pouco trabalho e a promessa de uma receita razoável, graças às celuloses.
Contava-me ele tudo isto com um ar, a um tempo espantado, e a outro realista. Sabia bem quais seriam as consequências destas políticas: dinheiro no curto prazo, miséria a longo prazo. E sem ilusões me foi avisando que a minha geração e as seguintes teriam uma vida mais difícil. Talvez até mais do que a dele, que atravessou todo o conturbado século XX.
O meu avô viveu à justa o tempo suficiente para assistir à confirmação das suas teses catastrofistas, quando o petróleo verde [era assim que chamavam ao eucalipto os estrategos económicos da altura] se consumiu pelo fogo, na maior parte dos casos ainda antes de se ter feito sequer o primeiro corte.
Ainda nos finais da década de 80, princípios da década de 90, recordo outra decisão estratégica, que encheu os bolsos a uns poucos, e condenou à miséria futura muitos mais: com o dinheiro da União Europeia [tal como na história das oliveiras], começou a distribuir-se dinheiro a quem abatesse um barco de pesca. E com isso o país passou a "exportar", não o seu peixe, mas os seus pescadores.
Foi ainda na mesma época que se multiplicaram [de novo com fundos europeus] os cursos profissionais, técnico-profissionais, ou profissionalizantes da treta. Qualquer curso mixuruca que se fizesse, ou que não se fizesse [ninguém chumbava por faltas], garantia um subsídio (pequeno) para o formando, um salário (razoável) para o formador, e uma conta bancária (generosa) para o promotor do saber.
Mas para que serve recordar esta espécie de "cromos" que não constam da "caderneta" de Nuno Markl? Serve para lembrar que foi a nossa iluminada classe política, os que nos governam há três décadas, que nos conduziu para esta situação de ruína. Nomeadamente um certo professor que anda por aí em campanha, insistindo que os portugueses têm de voltar a produzir, têm de voltar-se para o mar, têm de qualificar-se. O mesmo professor que, nos finais da década de 80, princípios da década de 90, liderava o Governo que trocou as oliveiras e os barcos de pesca por dinheiro para eucaliptos, auto-estradas e cursos profissionais da treta.

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