Silêncios lamentáveis
Perante o deserto, a posição de Cavaco tornou mais evidente o unanimismo podre em que vive a política portuguesa
"Levei mais de 30 anos a colocar-me esta questão, mas esta semana entendo que tenho de o fazer: Terá a esquerda razão, apesar de tudo? Vejamos: um dos grandes argumentos da esquerda é que aquilo a que a direita chama "mercado livre" é actualmente uma armadilha.
Os ricos dirigem um sistema global que lhes permite acumular capital e pagar o preço mais baixo possível pelo trabalho. A liberdade que daí resulta aplica-se apenas a eles. A maioria tem de trabalhar mais, em condições cada vez mais inseguras, para enriquecer a minoria. A política democrática que se propunha enriquecer o maior número possível está agora no bolso dos banqueiros, dos barões da comunicação social e outros magnates que dirigem e possuem tudo."
Os dois parágrafos que acabam de ler são, como indicam as aspas, uma citação. São o arranque de um texto de opinião de Charles Moore, prestigiado jornalista britânico e biógrafo oficial de Margaret Thatcher, que foi editor do The Spectator (1984-90), do The Sunday Telegraph (1992-95) e do The Daily Telegraph (1995-2003), publicado no seuTelegraph online a 22 de Julho, na sequência do escândalo das escutas do News of the World, de Rupert Murdoch. (http://www.telegraph.co.uk/news/politics/8655106/Im-starting-to-think-that-the-Left-might-actually-be-right.html)
São um arranque de uma importante reflexão sobre o estado a que chegaram a política e a sociedade ocidental. Uma análise crua da situação que se vive no momento de crise financeira e económica, que resulta da forma como têm sido guiadas politicamente as sociedades, com o objectivo assumido de satisfazer os interesses "dos banqueiros, dos barões da comunicação social e outros magnates que dirigem e possuem tudo", como refere Charles Moore.
É o insuspeito e conservador declarado Charles Moore quem faz o retrato do sistema: "E quando os bancos, que cuidam do nosso dinheiro, o levam, o perdem e, devido às garantias do Governo, não são punidos, algo de pior acontece. Fica evidente que - como a esquerda sempre afirmou - um sistema que se propunha servir a maioria foi pervertido para enriquecer alguns. O sistema bancário global é um recreio aventureiro para os seus participantes, com seguros pavimentos esponjosos, para que eles recuperem, quando caem. O papel dos restantes, tal como nós, é simplesmente pagar."
E congratulando-se por os estragos dos abusos dos "donos do mundo" não terem sido até agora piores, Charles Moore não deixa de alertar para os riscos que a democracia corre: "Uma das coisas que estão diferentes é que as pessoas em geral perderam fé na liberdade de mercado e na ordem democrática ocidental. Graças a Deus, ainda não transferiram a sua fé, como aconteceu nos anos trinta, para o totalitarismo. Apenas se sentem sombrios e desconfiados. E fazem a pergunta simples: "O que há para mim?", e não ouvem uma boa resposta."
A importância central deste artigo de Charles Moore, desta crítica ao sistema dominante - hegemonizado pelas teses neoliberais de sagração da chamada "liberdade de mercado" que tudo subjuga -, feita por um seu prestigiado defensor ao longo dos anos, espelha o escândalo que o estado do mundo ocidental causa a quem ousa pensar com autonomia e liberdade. É escandaloso o modo como os políticos eleitos pelas populações em eleições democráticas se submetem à satisfação dos interesses dos "donos do mundo" e aceitaram perverter as regras básicas da democracia e de uma sociedade baseada na prossecução do difícil equilíbrio da justiça social e o bem-estar de todos.
Mas esta reflexão torna-se tanto mais pertinente quanto até já "donos do mundo" - e não apenas a esquerda - defendem a tributação dos mais ricos. Depois de Warren Buffett ter defendido a ideia, a Itália anunciou a criação de um imposto. Alguns multimilionários franceses apoiaram as palavras de Buffett e o Governo liderado pelo Presidente Nicolas Sarkozy já anunciou, no âmbito do plano de austeridade contra a crise, a instituição em França de um imposto extraordinário que vai taxar em três por cento as fortunas acima de 500 mil euros.
É significativo que dentro do próprio sistema, da própria elite, surjam críticas ao desequilíbrio e à injustiça social inerente à aplicação do modelo neoliberal que se foi instalando na Europa e nos EUA. E é significativo porque é uma demonstração do nível escandaloso de desigualdade criada. Para o combater, basta reintroduzir o tipo de impostos sobre mais-valias e património que existia há trinta anos. E, já agora, para quando o fim das off-shores?
O insólito desta situação é tanto maior quanto ela mostra como os Governos dos países europeus são reverentes ao poder económico. À Itália e a França só avançaram para esta taxação extraordinária dos mais ricos depois de os próprios pedirem. A ordem parece agora ir ser seguida em Espanha e em Portugal. De repente, todos os partidos parlamentares concordam com o que o PCP e o BE defendem há anos. Só porque Buffett disse o óbvio.
A discussão sobre taxação dos mais ricos é ainda uma demonstração de que os riscos que tais níveis de injustiça social podem criar são imensos. E de que, entre os próprios "donos do mundo", há quem tenha consciência de que, um dia destes, o povo pode bater-lhes à porta. E não porque o povo seja "uma cambada de criminosos" ou queira comer brioches. Mas simplesmente porque há limites para o abuso e para a indignidade.
O texto de Charles Moore tornou-se gritante esta semana como demonstração da diferença entre a liberdade de pensamento democrático que existe numa sociedade como a inglesa, com séculos de vida democrática, e outra em que a democracia tem menos de quatro décadas, como a portuguesa. É lamentável que haja em Portugal tão pouca autonomia e liberdade de pensamento entre os publicistas e que isso não permita uma atitude idêntica à que este artigo representa: uma crítica violentíssima feita por um proeminente publicista conservador britânico ao sistema neoliberal. Uma ausência de massa crítica e uma obediência cega à ortodoxia, que se estende também a parte da esquerda portuguesa, sobretudo ao silencioso PS. Ou será que temos de classificar o PS como de direita, à semelhança do que faz Charles Moore neste artigo, em que classifica como de direita o Partido Trabalhista liderado por Tony Blair e por Gordon Brown?
Deve ser elogiado o Presidente da República, Cavaco Silva, por ter saído a terreiro para rejeitar a proposta de inscrição nas Constituições dos países membros da União Europeia de uma norma-travão ao défice e ao endividamento. É certo que Cavaco Silva sabe, como todas as pessoas minimamente informadas sabem, que a soberania não é hoje plena nos países da União Europeia. E que a soberania financeira não existe nos países da zona euro. Bem como que essa perda de soberania ficou inscrita no Tratado de Maastricht, assinado, aliás, pelo próprio Cavaco Silva.
Igualmente confrangedor é que, perante tal proposta franco-alemã, o PS permanecesse calado sobre este assunto. Perante o deserto, a posição de Cavaco tornou mais evidente o unanimismo podre em que vive a política portuguesa. Um clima de paralisia e submissão, em que apenas o Presidente da República teve coragem de assumir o não a Ângela Merkel e Nicolas Sarkozy. Parco nas palavras, Cavaco foi directo na crítica: "Constitucionalizar uma variável endógena como o défice orçamental - isto é, uma variável não directamente controlada pelas autoridades - é teoricamente muito estranho. Reflecte uma enorme desconfiança dos decisores políticos em relação à sua própria capacidade de conduzir políticas orçamentais correctas."
Cavaco Silva sabe, de forma cristalina, aquilo que é uma evidência: que o controlo do défice e da dívida são instrumentos de governação e que são erguidos em paradigma pela doutrina neoliberal. Até porque uma coisa é obedecer-lhes e segui-los enquanto política de governação, que têm inscrição legal em tratados internacionais e leis nacionais; outra coisa é colocar estes princípios doutrinários de governação neoliberal na Constituição, o texto fundamental em que está inscrito o funcionamento do sistema político de um país, o edifício de poderes do regime. No dia em que tal acontecer será a consagração simbólica máxima do neoliberalismo como regime.