18.11.11



Os dois amos de Arlequim

"A fim de melhorar a competitividade dos custos da mão-de-obra, os salários do sector privado deverão seguir o exemplo do sector público e aplicar reduções sustentadas", escrevem os senhores (nunca a palavra "senhores" foi tão apropriada) do FMI, BCE e CE no comunicado em que apresentam os resultados da recente vistoria à sua quinta à beira-mar plantada e avalizam as contas prestadas pelos feitores. E como os seus desejos são ordens, não tardará muito até que os ministros Álvaro e Vítor Gaspar apareçam nas TVs a anunciar outra "inevitabilidade": a redução de salários também no sector privado.
Parece, contudo, haver um problema: é que, diz a CIP, os patrões portugueses preferem, em vez de pagar menos aos trabalhadores, aumentar-lhes o horário de trabalho (a coisa vai dar ao mesmo mas afigurar-se-á aos patrões que trabalhar mais não dói tanto como receber menos; só resta saber se o Governo decretará que os dias passem a ter 30, 40 ou 48 horas).
Adivinha-se assim uma situação típica da "commedia dell'arte" (embora, no caso, se deva falar antes de "tragedia dell'arte"), com Arlequim a correr desalmadamente de uma mesa para outra para tentar servir ao mesmo tempo o almoço aos seus dois amos.
Na peça de Goldoni, tudo acaba em bem. Na de Passos Coelho, patronato e "funcionários de 5ª, 6ª, 7ª ou 8ª linha" (presidente do BPI "dixit") dos "mercados" só uma coisa é, para já, certa: quem pagará o espectáculo.

17.11.11

Ângulo Raso

Aeroporto de Beja

Li, há dias, uma breve notícia sobre o novel Aeroporto de Beja. Que nos primeiros três meses desde a sua inauguração em Maio passado acolheu 164 passageiros (uma média que não chega a 2 por dia)! E que nos voos de e para Londres, em quase 5 meses, dos 1079 lugares disponibilizados ficaram vagos 61%!
Apostando em taxas aeroportuárias competitivas e na utilização intensiva por operadores de baixo custo, os estudos prévios (sempre estimulantes para ideias megalómanas) haviam previsto uma média de 178 mil passageiros em 2009, 1 milhão em 2015 e 1,8 milhões em 2020!

A factura está já aí.O custo do aeroporto foi de 33 milhões de euros. Uma ninharia para um país rico como o nosso! Argumenta-se que financiado por verbas europeias. Como se houvesse dinheiro gratuito.
Entretanto, a empresa pública que desenvolveu o projecto já pereceu e a gestão foi transferida para a ANA e, claro, os custos para os contribuintes.
No meio do engarrafamento de notícias, depressa se dissipou o engarrafamento aéreo alentejano. Sem escândalo. Afinal, nada de anormal.

16.11.11

A bem da nação, esqueça o papel

Por Ana Sá Lopes
Duque conseguiu a proeza de defender o contrário do que está no papel

O grupo de trabalho para o serviço público de televisão nasceu torto e está a morrer sem glória. Diga-se de passagem que quem o nomeou, o governo, não esperava dali grande coisa: as decisões da tutela sobre o serviço público foram sendo conhecidas muito antes de o grupo arranjar tempo para se sentar à volta de uma mesa e dar início à tarefa de pensar qualquer coisa.
Eventualmente, o governo tinha razão. Para alinhavar aquele conjunto de banalidades sobre programação para “minorias”, “alternativas”, “produtos culturais”, “ficção histórica”, “concertos no estrangeiro”, etc., não era preciso juntar tanta gente. Felizmente que, como todos os membros trabalharam pro bono, ninguém se pode queixar de despesismo do Estado. Ao menos isso.
O papel tem uma contradição extraordinária, que revela que alguém estava a dormir enquanto os outros escreviam. Não houve nenhum prurido em institucionalizar o preconceito de que o serviço público é politicamente orientado. É inadmissível que um grupo de quem era esperado o mínimo de credibilidade não se tenha dado ao trabalho de apresentar uma prova que fosse de uma difamação genérica.  
Mas se dúvidas houvesse sobre a ligeireza do grupo de trabalho, a declaração de ontem do seu presidente, João Duque, no “Fórum TSF”, é não só um monumento ao nonsense jornalístico, como uma deliciosa contradição com o documento que, enquanto presidente, assinou. O que disse ontem João Duque? Basicamente, que a informação da RTP-Internacional deveria ser editada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros “a bem da nação”.
Quando o pivot lhe pergunta se afinal a informação continuaria informação ou passaria a propaganda, Duque não tem dúvidas.
A ideia é ser mesmo propaganda. Para Duque, “seja qual for o governo e a sua orientação, ele tem o direito de fazer a sua diplomacia” porque “foi sufragado em votos”. Pelos vistos, a informação, as suas regras e deontologia são um mundo estranho ao mesmo Duque que ataca violentamente a suposta “governamentalização” da RTP e da RDP nacionais. Afinal, para consumo externo, “se o governo quiser manipular mais ou manipular menos, opinar, modificar, é da sua inteira responsabilidade”. “Estamos convencidos que o faz a bem da nação porque foi sufragado para isso.” O delírio do economista João Duque foi tão grande que conseguiu a proeza de defender precisamente o contrário do que escreveu (?) no papel, a propósito da Lusa e das suas delegações espalhadas pelo mundo. Diz o papel: “Consideramos aconselhável reformular o modelo institucional da agência de modo a impedir
a sua utilização ilegítima ou eticamente reprovável pelo poder político e também de forma a prevenir uma confusão entre missões jornalísticas e de política externa.” Mais, carregando na mesma tecla: “O serviço noticioso [...] deve conquistar a atenção e o respeito das audiências internacionais, ser um exemplo de imprensa livre, isento e profissional.” Aparentemente, quando alguém escreveu isto, Duque saiu da sala para ir comentar a crise
do euro.



Nacional cosmopolitismo



O relatório da metade sobrante do Grupo de Trabalho para a Comunicação Social nomeado pelo Governo para "definir" essa misteriosa coisa que é o serviço público de televisão propõe que, erguendo-se gloriosamente no meio dos destroços que ficarem da demolição da RTP, a RTP Internacional (RTPI) passe para a tutela do... MNE. Além disso, para o líder do tal Grupo, o economista João Duque - cujo currículo conhecido na matéria se resume a umas idas às TV para "debater" - a informação do canal deve ser "filtrada" e "trabalhada" visando a promoção de Portugal. Coisa que, tomem nota os que têm o mau hábito de pôr questões, "não deve ser questionada". Tudo "a bem da Nação!", a filtragem e o não questionamento, como nos bons tempos da outra senhora.
Simultaneamente, o meio Grupo quer "cosmopolitismo" na "mentalidade e moldes" da programação da RTPI.
Segundo Borges, o termo "cosmopolita" é criação dos estóicos e opõe a ideia de "cidadão do Cosmos" e "cidadão do Universo" à de mero cidadão da sua cidade ou do seu país. Cosmopolitismo é, pois, cidadania universal.
Teremos, assim, indo avante a proposta de Duque & Cª, uma RTPI "cidadã do Universo" às segundas , quartas e sextas e a "filtrar" e "trabalhar" a informação para "despertar e consolidar o interesse por Portugal" às terças, quintas e sábados. Sobram os domingos, mas Duque há-de também arranjar-lhe qualquer coisa que fazer nesse dia "a bem da Nação".

15.11.11



O ano de todos os prodígios


Quando ontem, depois de o ministro Álvaro ter anunciado o "fim da crise", vi no plenário da AR o deputado Agostinho Lopes pedir-lhe que "[tivesse] vergonha", fiquei expectante diante da TV, aguardando o momento em que o suposto clone de Manuel Pinho (que, como o protótipo, antes estivera também a falar de minas) faria uns corninhos para a bancada do PCP.
Precipitei-me na suposição. Contra todas as expectativas, Manuel Pinho não encarnara afinal no ministro Álvaro. Aliás, para que não restassem dúvidas, o próprio logo veio esclarecer que, quando disse - numa língua inédita, vagamente parecida com o português - que "2012 irá certamente marcar o ano do fim da crise" não queria dizer que "2012 irá certamente marcar o ano do fim da crise" mas que, na sua pitoresca falação, "irá marcar o ano" do princípio do fim da crise (assim a modos como na anedota: o fim da crise voará em 2012, mas baixinho). Já quanto ao fim do fim (da crise, evidentemente) só Deus e a sra. Merkel sabem, pois "há imponderáveis que não podemos controlar".
Os portugueses habituaram-se a ouvir ministros e primeiros-ministros anunciar ano após ano o fim da crise, ou o princípio do fim da crise, ao mesmo tempo que lhes vão ao bolso em nome da crise. Em 2006 foi o saudoso Manuel Pinho, em 2009 foi Sócrates, já este ano foi Passos Coelho, agora Álvaro Santos Pereira. Pena é que a crise ligue tanto ao que eles dizem como ao que eles fazem.

14.11.11

Otelo e Merkel, a mesma luta

Por Ana Sá Lopes
A queda de Papandreou e de Berlusconi foram dois efectivos golpes de Estado

Como a maioria dos militares que fizeram o 25 de Abril, Otelo viveu a ditadura o melhor que pôde. Ainda é difícil discutir o papel dos militares na manutenção da ditadura, uma vez que foram, décadas depois, os libertadores do país. Este é um assunto tão doloroso, um tabu tão forte como discutir a relação desses mesmos militares com a PIDE (com quem trabalhavam em conjunto nas colónias, por exemplo). Por exemplo, a amizade do marechal Costa Gomes, o Presidente da República que seria depois acusado de ter ligações com o PCP, com o famoso inspector da PIDE São José Lopes está nos livros de História.
Mas dessa relação estreita com a ditadura não vale a pena exorbitar o contributo militar – a generalidade dos portugueses, melhor ou pior, no mínimo por omissão, foram um grande sustentáculo da ditadura. Isso não está nos livros de História, mas basta ler os espaços em branco na história da oposição e os almanaques da época para perceber como foi possível o regime durar, para lá do apoio da NATO e dos Estados Unidos e das circunstâncias da guerra fria.
Otelo viveu melhor a ditadura do que a democracia. Foi a ditadura que lhe permitiu o heroísmo manifestado no 25 de Abril. A democracia, depois, não lhe permitiu quase nada. Ficou-se por uma falhada candidatura a Presidente, que teve ainda um efeito popular considerável, e uma prisão sob a acusação de fazer parte das FP-25, uma organização terrorista que actuou no Portugal dos anos 80. Um destino terrível para um herói.
Em parte, isto explica que Otelo venha agora anunciar um previsível golpe militar, “um outro 25 de Abril”, pela segunda vez no ano de 2011. Os portugueses olham-no entre a estranheza e a comiseração, um alien do outro mundo numa democracia consolidada onde os governos são derrubados em eleições livres e justas.
O problema é que enquanto Otelo discorre publicamente sobre golpes de Estado e não é levado a sério, outros dedicam-se a fazê-los, sob a apatia geral. Esta semana, a Europa foi palco de dois golpes de Estado comandados por Bruxelas – que hoje é uma palavra que funciona como um eufemismo para não ter de dizer “Alemanha”. A queda de Papandreou na Grécia e de Berlusconi na Itália foram dois efectivos golpes de Estado desencadeados a partir do centro europeu, ultrapassando as instâncias democráticas dos respectivos países.
Como escreveu o colunista do i Tiago Mota Saraiva, eu também queria festejar a queda de Berlusconi, mas assim não. Rir de Otelo Saraiva de Carvalho e apoiar os golpes de Estado de Merkel é um contra-senso pesado. 



Otelo ainda lhes mete medo


"Para mim, a manifestação dos militares deve ser, ultrapassados os limites, fazer uma operação militar e derrubar o Governo", disse Otelo à Lusa. A hoje corajosa e vociferante trupe de ressentidos do 25 de Abril logo viu aí o "apelo" a novo golpe de Estado, sacando ofegante do Código Penal (esqueceu-se do RDM) contra o agora coronel na reserva. No tinteiro deixou o inconveniente "para mim", que faz da afirmação mera expressão de uma opinião pessoal. Ou de uma convicção: "Estou convicto de que, em qualquer altura, se os militares estiverem dispostos a isso, podem avançar sempre para uma tomada de poder", disse ainda Otelo, no óbvio papel de "Monsieur" de La Palice.
A Renascença foi mesmo ao ponto de ridicularizar a PGR por esta não abrir um inquérito ao caso, "a não ser que factos posteriores o justifiquem", deitando-se a interpretar o que serão "factos posteriores", além de factos posteriores. Os resultados divergem: para o corpo da notícia, factos posteriores são... "consequências práticas", para o título já é... "golpe de Estado", coisa bem mais sonora e radiofónica.
A mesma gente não manifesta, no entanto, idêntico fervor democrático face aos recentes golpes de Estado, consumados e não imaginários, na Grécia e em Itália, países onde, por imposição do Deus Mercado e de Merkel e Sarkozy, seus profetas, governos resultantes do voto foram substituídos por governos "técnicos" sem mandato popular.