EDITORIAL
A face oculta de Sócrates e companhia
por Ana Sá Lopes
No dia em que Sócrates for humilhado, muitos auto-amordaçados virão a terreiro afirmar que já diziam isto há muito tempo
Ana Paula Vitorino foi ontem saneada do secretariado e da comissão política do PS. Outrora, a ex-secretária de Estado dos Transportes foi uma estrela em ascensão na constelação socialista, mas as coisas foram mudando devagarinho. Quem leu as escutas do processo Face Oculta percebe claramente o porquê do afastamento de Ana Paula Vitorino: provavelmente, mesmo que não tivesse testemunhado nos termos em que testemunhou no processo, a resistência de Ana Paula Vitorino no governo a variados negócios (como fica claramente sugerido da leitura das escutas) poderia ter sido suficiente para ditar a sua sentença de morte no universo socrático.
Mas Ana Paula Vitorino fez "pior" - quebrou a omertá, o silêncio fundamental à sobrevivência no submundo da política partidária e governativa. O seu depoimento no processo Face Oculta foi considerado pelo juiz Carlos Alexandre o que "merece credibilidade e se apresenta congruente com a prova dos autos", juntamente com o de Luís Pardal. O juiz desvalorizou o depoimento de Mário Lino, que negou ter sensibilizado a sua secretária de Estado para o facto de estarem em causa negócios de "amigos do PS".
Ao depor na justiça, Ana Paula Vitorino aceitou beber a cicuta. Quem se mete com Sócrates e amigos leva, leva sempre. Não é quem se mete ao estilo de Ferro Rodrigues ou de Manuel Alegre, agora recuperados para a família. É quem se mete onde verdadeiramente dói e onde dói a Sócrates não é nas divergências quanto a políticas sociais, legislação laboral ou rendimento social de inserção. O que verdadeiramente dói são assuntos aborrecidos chamados processo Face Oculta, Figo e Taguspark, licenciamento do Freeport em vésperas de eleições, tios e filhos de tios, professores virtuosos, compra de casa de luxo a preços de amigo e offshores metidas pelo meio, e por aí fora.
De vez em quando, tudo isto parece esquecido na vertigem dos dias financeiros. Mas a crise financeira e económica está longe de ser o problema mais grave deste governo (e grande parte do problema tem a ver com a crise internacional, por muito que a direita queira restringir o resgate a um problema Sócrates).
Mas o pior do caso Ana Paula Vitorino é que, tal como aconteceu durante o caso PT/TVI e Face Oculta, a omertá continuará a funcionar alegremente. Os socialistas, com excepções aqui e ali, passaram a ser impressionantemente cobardes e incapazes de afrontar o chefe.
Enquanto não perder estrondosamente as eleições (o que está longe de ser um dado líquido em Junho), José Sócrates continuará a fazer o que bem lhe apetecer, dirigindo o PS apenas a partir da sua cabeça, por vezes dissonante da realidade. No dia em que for humilhado, é evidente que não lhe restarão quaisquer amigos. E a maior parte dos auto-amordaçados de hoje virão a terreiro afirmar que já diziam tudo isto há muito tempo. Será mentira: dizer diziam. Mas diziam muito baixinho.