Estado das Coisas
Decisões de gaveta
É tecnicamente possível, em processo penal e, no decurso de uma investigação criminal, haver decisões de gaveta? É legalmente possível existirem, neste domínio, decisões de natureza administrativa?
Pela natureza do processo-crime e pelos valores constitucionais em jogo, naquilo que diz respeito à transparência e aos direitos fundamentais em colisão, a resposta só pode ser negativa.
As decisões de gaveta, que mais não são do que puras decisões administrativas, não suportadas pela existência de um processo-crime, são ilegais e violam normas do Código de Processo Penal. E é assim porque ser de gaveta é ser obscura, não ser transparente e não permitir a sua fiscalização por via de recurso. Esta é a regra seja qual for a condição social, económica, pública ou anónima do arguido visado.
Dizem as más-línguas que, a propósito do processo ‘Face Oculta’, foram proferidas decisões ambíguas, confusas e ao arrepio das normas legais. A ser verdadeira esta tese, quem assim agiu violou as leis criminais e a Constituição.
Mas digam-me que isto não é verdade, que se trata de uma fantasia. Então, não compete ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e ao Procurador-Geral da República garantir a legalidade e defender a transparência das decisões judiciais e as boas regras de funcionamento do Estado de Direito? Claro que sim!
As decisões referentes às escutas entre Sócrates e Vara têm o efeito, para a imagem e a dignidade da Justiça, de um verdadeiro tsunami. Não pela não divulgação pública das escutas que só têm relevância para o processo, por se tratar de matéria que não pode ser resgatada para fins de interesse político e para a luta partidária. Mas por falta de esclarecimento dos procedimentos adoptados nas várias decisões proferidas.
A revelação dos fundamentos das decisões não viola o segredo de justiça, nem a nulidade decretada que fulminou a validade das escutas. Esta exigível divulgação pública não implica a divulgação do teor das escutas. Divulgar os procedimentos processuais é reforçar a transparência das decisões judiciais e validar os alicerces da democracia.
Não quero saber o teor das conversas gravadas. O que pretendo é saber os fundamentos das decisões proferidas. Manter tudo neste limbo de escuridão é deixar que os ventos e a tempestade semeada pelo tsunami arrastem outros que nada fizeram para o estado a que isto chegou.
A Justiça perde em rigor, em clareza e em coragem.
Não há dúvidas mas muitas certezas. Se não foi instaurado qualquer inquérito então não é possível aplicar as regras do CPP.
Rui Rangel, Juiz Desembargador