"Viver neste pó é modo de viver?"
JOSÉ MIGUEL GASPAR
Estamos na Avenida Duarte Pacheco, larga e seca avenida solar da doca de Matosinhos, em frente ao cais sul do porto de Leixões, e a primeira impressão é que ali cheira mal. É um cheiro azedo, de curral, intenso, parece mosto molhado ou vinho que azedou.
Ao mesmo tempo, pressente-se uma agressão invisível no ar e os olhos lacrimejam. Apura-se o olhar, procura-se a contraluz e vê-se o agressor: milhares de partículas de micro estacas de madeiras, afiadas e finas, voam descontroladamente pelo ar, voltejam em todas as direcções, vão levadas pelo vento que vem em nortada.
Minutos depois de ali se chegar, naquela mesma avenida por onde transitam dezenas de milhares pessoas por dia, há mais sentidos em alerta: instalou-se comichão no nariz, um prurido agudo, ferino, a garganta arranha, reclama, e aquilo desata a tosse seca. Isto foi ontem à tarde - e foi uma tarde como as outras.
O que é aquilo? Aquilo é um gigante que está sempre a crescer, é uma montanha de milhões de pequenas partículas de madeira que diariamente são descarregadas às toneladas no cais do porto de Leixões, na gestão da APDL (Administração do Porto do Douro e Leixões), concessionado à TCGL (Terminal de Carga Geral e Graneis de Leixões).
Aquilo é estilha, desperdício de madeira em aparas que terá como destino final a transformação em pasta de papel. Mas até lá, a estilha vai permanecer ali, amontoada, depositada a céu aberto, tendo como parca protecção uma parede de três contentores empilhados ao largo de umas centenas de metros a correr a avenida da doca.
O que é que acontece quando há vento? A nuvem de pó ergue-se, multiplica-se e vai livremente invadir toda a zona norte de Matosinhos, pondo-se como um manto de pó e de tosse sobre a zona histórica da cidade.
"É possível viver assim?", pergunta José Pina, 80 anos, fechado na sua casa da Rua Conde Alto Meirim, metros acima do porto de Leixões, olhos intumescidos, inchados, a aguar. "É impossível! Não posso sequer abrir as janelas de casa. Da minha casa! Nunca! Se as abro, o pó entranha-se todo. Viver com este pó, permanentemente, é modo de viver?".
José de Pina é um dos 300 cidadãos que se organizaram há nove anos para combater a APDL e o seu aparente abuso pelas descargas que contaminam o ar. "Mas não somos 300. Somos muitos mais e estamos a crescer".
Já estamos mais acima, Rua Cartelas Vieira, zona do Ribeirinho. Alihson Medeiros, cidadão brasileiro de 37 anos que aqui chegou em 2007 para administrar a Residencial Porto de Leixões, traz uns saquinhos na mão. Lá dentro guarda provas de crime: estilha que recolheu em casa, saquinhos com data, local, quantidade.
Alihson traz uma justa reclamação: a sua residencial está a perder cada vez mais clientes. "É, eles estranham o cheiro, perguntam o que é aquele pó, se aquilo é sempre assim, reclamam, torcem o nariz e muitos vão embora". Alihson está a perder dinheiro - "mas a cidade está a perder mais. Já viu o que estes estrangeiros vão depois dizer de nós?".
Indiferente a tudo, à conversa e a todos, lá em baixo, o monstro cresce, descarregado nas garras da grua, a montanha de estilha a trepar, uma imensidão de pó no ar, novamente acima do limite da parede protectora, uma vez mais, escassos três dias depois de a APDL ter dito que aquilo não sucederia mais.
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