5.8.10

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PRIMEIRO PLANO

Berlusconizemos, então

por Ana Sá Lopes
Desde 2004 que Silvio Berlusconi tenta impor à Itália uma lei para se auto-imunizar, a si próprio e a mais alguns altos cargos do Estado. A lei, que foi aprovada duas vezes no Senado italiano, tinha um objectivo desapaixonadamente invocado pelo próprio Berlusconi - "evitar que se possa utilizar a justiça contra quem se encontra nos mais altos níveis institucionais do Estado", por razões políticas. O argumento acabou por ser destruído (as mesmas duas vezes) pelo Tribunal Constitucionalitaliano: afundaria a igualdade dos cidadãos perante a lei. Il Cavaliere reagiu prontamente: a proposta não tinha passado porque a maioria dos juízes do Constitucional italiano são "esquerdistas", de resto, como os juízes que o "perseguem".


A lei que Berlusconi tentou impor sem o conseguir tinha uma enorme vantagem sobre outros sistemas: a transparência. Pior que assumir que os cidadãos não são iguais perante a lei é o charco em que Portugal vive por estes dias, dividido entre duas barricadas irracionais: os que julgaram e os que, mais do que absolver o primeiro-ministro, engrossam a gritaria da "conspiração".


Do despacho da discórdia tem-se discutido o método - indefensável - dos procuradores, que avançam um argumento estranhíssimo para não terem ouvido o primeiro-ministro: "falta de tempo". Mas o conteúdo das perguntas concretas e o debate sobre se valia ou não a pena fazê-las tem escapado a proclamações grandiloquentes - a começar pela oposição, que foge do assunto como o Diabo da cruz, invocando a "separação de poderes", e deixando o caminho livre ao PS e ao governo para mandarem para o diabo a dita separação.


Façamos de conta que isto era um processo de tráfico de droga. Se o tio do Tó Meio-Grama fosse contar para os autos que tinha telefonado ao Tó para ele facilitar uma reunião com um dos arguidos; se o primo do Tó Meio-Grama revelasse à justiça que se tinha encontrado com o Tó, em casa dele, e que lhe tinha pedido autorização para usar o seu nome para facilitar um negócio; se ainda por cima o primo dissesse em sede de investigação judicial - e não aos jornais - que as reuniões promovidas pelo Tó Meio-Grama tinham facilitado determinado empreendimento, qual seria o destino mínimo do Tó? Ser ouvido pelos investigadores, não?


É evidente que daqui não se pode concluir pela culpabilidade do Tó Meio-Grama. O Tó Meio-Grama poderia estar completamente inocente e ser vítima de uma guerra familiar, política, passional, etc. Mas um investigador profissional tinha a obrigação de o ouvir. Neste caso, declarou-se uma imunidade muito menos legítima que a proposta por Berlusconi e aprovada pela maioria do Senado. Dar nome às coisas não é muito português.

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