14.3.10

1913


Desjudicialização

O escandaloso processo de desjudicialização da justiça a que hoje se assiste em Portugal constitui um perigoso retrocesso civilizacional que ameaça os fundamentos do estado e mutila a cidadania. A justiça, enquanto valor superior do estado de direito, deve ser garantida a toda a sociedade através de órgãos soberanos específicos que são os tribunais. Assim foi desde os tempos mais remotos, pelo menos nas sociedades mais civilizadas.

Porém, o que hoje se está a passar no nosso país, mais não é do que uma recusa crescente do estado em administrar a justiça nos tribunais, ou seja, nos únicos locais onde ela pode ser feita. Litígios que durante séculos foram dirimidos soberanamente pelo estado através dos tribunais são hoje atirados para instâncias não soberanas ou mesmo para instituições privadas. Mais do que uma denegação do acesso aos tribunais, essa situação favorece o reaparecimento de formas primitivas de fazer justiça, ou seja, incentiva o retorno à justiça privada, à justiça pelas próprias mãos.
Ainda recentemente quase duas dezenas de pessoas estavam presas por crimes relacionados com dívidas (incêndio de automóveis, espancamentos, sequestros e assassínios). E tudo isso porque hoje, em Portugal, não se pode levar um devedor a tribunal. Os magistrados acham que os tribunais não são para isso, porque - dizem - não são «agências de cobranças de dívidas». Ora, só há duas maneiras de cobrar um crédito: deitar as mãos ao pescoço do devedor e obriga-lo a pagar à força ou então leva-lo a tribunal para que um juiz o intime a fazê-lo a bem, sob pena de lhe penhorar o património.
Porém, os tribunais portugueses transformaram-se num inferno para os credores e num paraíso para os caloteiros. Quem quiser cobrar uma dívida em tribunal arrastar-se-á por lá durante anos e anos, gastará quantias elevadíssimas em custas judiciais e no final, se conseguir provar o crédito, receberá uma sentença que o próprio tribunal se recusa a fazer cumprir, obrigando o credor a recorrer a um profissional liberal (solicitador) para a executar. Ou seja, o tribunal abdica de fazer cumprir as suas decisões soberanas, remetendo os beneficiários dessas decisões para o «mercado». A privatização da acção executiva, levada a cabo há sete anos pela então ministra Celeste Cardona com a cumplicidade da Ordem dos Advogados, constitui um dos maiores escândalos de sempre na justiça portuguesa. Sublinhe-se que a acção executiva é um processo doloroso e traumático, que desde sempre foi conduzido por juízes. De repente, porém, um governo achou que ele devia passar para as mãos de um profissional liberal que nem sequer é licenciado em direito. O resultado está à vista.
O mesmo, aliás, está a acontecer noutros domínios, como os processos do direito de família, que têm vindo a ser retirados dos tribunais e remetidos para as conservatórias de registo civil. Sublinhe-se, por comparação, que no caso de falência de uma empresa, onde estão em causa apenas interesses económicos, o respectivo processo é dirigido por um juiz, com advogados, um magistrado do MP, administradores da falência, tudo com a maior solenidade e todas as garantias processuais. Mas, em se tratando, por exemplo, da dissolução de um casamento, onde estão em causa valores imateriais relevantíssimos, as pessoas são remetidas para funcionários públicos.
Idêntica solução pretende-se também estender aos inventários, ou seja a alguns dos processos judiciais de maior densidade litigiosa e conflituosidade pessoal. Agora o estado quer que esses processos deixem de ser tramitados nos tribunais sob a direcção de juízes para os remeter para as conservatórias de registo predial e para os cartórios notariais. Está-se mesmo a ver o que vai acontecer com as partilhas de heranças fora dos tribunais entre herdeiros desavindos.
O estado, em vez de formar mais e melhores magistrados, impede as pessoas de ir aos tribunais. Em vez de se preocupar em fazer mais e melhor justiça, apenas procura «aliviar» e «descongestionar» os tribunais. Em vez de criar novos tribunais, o estado entrega a justiça a privados ou então gasta quantias astronómicas na criação de arremedos de tribunais como os julgados de paz, não para resolver com justiça os litígios que ameaçam a paz social, mas para forçar pessoas desavindas a fazer as pazes.
Como se isso não bastasse, os cidadãos que conseguem ir a tribunal têm gastar elevadas quantias nas usurárias custas judiciais a que são condenadas pelos juízes.
Como dizia um pensador da contemporaneidade lisboeta, «isto não vai acabar bem».


Este é um bom e justo combate do bastonário.
E desta vez não defende a «dama» errada.
A desjudicialização é a solução, má e mal pensada, encontrada pelos governos Sócrates para resolver o problema da Justiça.
Mais uma vez não resolveu nada, só complicou a vida aos cidadãos.

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