5.1.10

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Todos iguais?

Por Pedro Lomba
As escutas fortuitas a José Sócrates no caso Face Oculta começam a cair naquele enorme buraco dos silêncios convenientes. Há muita coisa que não percebemos e contradições que não batem certo. Quase toda a gente já está desatenta ou desinteressada. Os políticos nada dizem porque temem o efeito de ricochete ("não se metem com os outros, para não se meterem com eles"). E, salvo excepções, os juristas portugueses que deveriam exibir o seu desconforto (conforme sucedeu em Itália perante Berlusconi) estão calados.
A perplexidade da opinião pública também tem prazo de validade. Reparem que não é por acaso que temos vindo a conhecer, tardiamente e a conta-gotas, os despachos do procurador-geral da República e do presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ). As primeiras certidões com escutas datam do início do Verão. Mas Pinto Monteiro andou desde Novembro para dizer se divulgava ou não o conteúdo do seu despacho de arquivamento, até finalmente recusar a 24 de Dezembro a sua divulgação. O primeiro despacho em que o presidente do Supremo Tribunal de Justiça sustenta a nulidade dos actos de intercepção e transcrição é de 3 de Setembro, seguido de outro de 27 de Novembro. Mas só há poucos dias é que o seu conteúdo apareceu.
É sempre mais proveitoso publicitar decisões judiciais passíveis de controvérsia quando os factos arrefeceram. Deve ser esse o "amadurecimento das decisões" a que se referia um juiz-desembargador, António Santos Carvalho, num artigo no PÚBLICO de sábado. Só que eu não vejo aqui "amadurecimento". Vejo decisões que se tornaram definitivas pelo decurso do tempo e que foram explicadas a más horas, já num contexto de distanciamento em relação aos factos.
Decisões como essas serão sempre menos escrutinadas e mais ignoradas. Quem é que se deu ao trabalho de ler à lupa os dois despachos de Noronha do Nascimento que declaram a nulidade das certidões com escutas a Sócrates? Quem é que se perguntará sobre o acerto dos seus argumentos e consequências? Quem é que lembrará de questionar por que é que quem delas tinha de recorrer (o Ministério Público) não recorreu?

Em Novembro tomámos conhecimento, pelos jornais, de que as escutas a Armando Vara, autorizadas por um juiz de instrução, tinham interceptado acidentalmente comunicações de José Sócrates. Dessas conversas resultaram "conhecimentos fortuitos" que, segundo os magistrados do processo, indiciariam a prática de crimes. Esses "conhecimentos fortuitos", diz a lei e disse-o Costa Andrade neste jornal, podem ser aproveitados noutro processo, desde que indiciem crimes do catálogo.
Pinto Monteiro chutou tudo para o presidente do STJ e Noronha do Nascimento decidiu o contrário. Sempre que o primeiro-ministro intervier em comunicações interceptadas, o presidente do STJ entende que é dele a competência para autorizar essa intercepção e a sua transcrição; e é dele a competência para decidir se os respectivos "conhecimentos fortuitos" são relevantes para o processo em que foram interceptadas ou para outro processo "instaurado ou a instaurar". Ou seja: tratando-se do primeiro-ministro, o presidente do STJ atribuiu-se a si próprio o poder inigualável para ser simultaneamente juiz de instrução, investigador criminal e titular da acção penal. Pelo meio ainda repreendeu o juiz de instrução de Aveiro, que interpretou a lei como tantos outros interpretariam.
Agora, alguém me explique o seguinte: como é que, com esta interpretação da lei, um primeiro-ministro que no futuro for alvo de uma escuta fortuita pode ser verdadeiramente investigado e sujeito, se for caso disso, ao respectivo procedimento criminal? Para já, a conclusão é simples e trágica: 35 anos após o 25 de Abril, temos um primeiro-ministro, este ou qualquer outro, praticamente blindado, mesmo que confesse os piores crimes. Isto não é um Estado de direito baseado no princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei. Concluam vocês aquilo que é. Jurista


PÚBLICO

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