5.4.10

1978








Câmara da Guarda afastou José Sócrates da direcção de obras nos anos 90 e repreendeu-o por desleixo profissional


Duas repreensões por unanimidade, ameaças de sanções legais e severas críticas dos serviços camarários foram o resultado dos últimos anos da actividade de José Sócrates como projectista de edifícios na Guarda, entre 1987 e 1991

José Sócrates foi afastado pela Câmara da Guarda, em 1990 e 1991, da direcção técnica de obras particulares de cujos projectos era autor, depois de ter sido várias vezes advertido por causa da falta de qualidade dos seus projectos e da falta de acompanhamento das obras - chegando a ser ameaçado com sanções disciplinares. Num dos casos, a saída de cena do então engenheiro técnico, que era deputado em regime de dedicação exclusiva há mais de dois anos, foi imposta pela autarquia socialista como condição para o desembargo da obra que projectara e dirigia. 



No conjunto de 26 processos de licenciamento encontrados pelo PÚBLICO, no Arquivo Municipal da Guarda, em que Sócrates esteve envolvido como projectista e responsável de obra entre 1987 e o final de 1990, em acumulação com a actividade de deputado num período em que era presidente da Federação do PS de Castelo Branco, avultam três em que o seu nome foi substituído na direcção dos trabalhos sem que ele ou o dono da obra o tenham requerido. 

Em dois destes casos o actual primeiro-ministro foi substituído por outros técnicos depois de ter sido repreendido por escrito pelo então presidente da câmara, Abílio Curto - que mais tarde veio a cumprir uma pena de prisão pelo crime de corrupção. As repreensões em causa foram enviadas pelo correio a José Sócrates, na sequência das deliberações camarárias, aprovadas por unanimidade, que o admoestaram pelo "pouco cuidado posto na elaboração do projecto" (1987) e pela "falta de fis- calização das obras de que é autor dos projectos devendo fiscalizá-las rigorosamente" (1990).

No primeiro deixou a obra no final de 1988 sem que se perceba porquê, não havendo no processo nenhum elemento que permita esclarecê-lo nem saber de quem partiu a iniciativa. Já no segundo, o seu afastamento resultou de uma imposição camarária cujo fundamento e objectivo também não consta do processo.


Anteriormente às advertências aprovadas pelo executivo já alguns técnicos camarários tinham subscrito diversas críticas à falta de cumprimento dos regulamentos em vigor por parte daquele projectista, nestes e noutros processos, redigidas em termos mais severos do que as deliberações do executivo.

Na terceira obra de cuja direcção Sócrates foi excluído, já em 1991, ano em que se tornou porta-voz do PS para a área do Ambiente e membro do secretariado nacional do partido, o seu afastamento foi também determinado por despacho camarário, mais uma vez sem que se perceba a razão e sem que no processo da obra existam quaisquer reparos ao seu trabalho.

Quanto à informação que deu origem à primeira das repreensões aprovadas pela câmara, o então chefe da repartição técnica da autarquia, já falecido, escreveu textualmente: "O senhor eng. técnico José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa foi já advertido pelo pouco cuidado que manifesta na apresentação dos trabalhos apresentados nesta câmara municipal e continua a proceder de igual forma, sem o mínimo respeito por ela e pelos seus técnicos (...) Deverão solicitar-se mais uma vez os elementos nas devidas condições e adverti-lo que não se aceitarão mais casos idênticos, sob pena de procedimento legal." A informação conclui, observando que se Sócrates "não pode ou não tem tempo de se deslocar à Guarda para fazer os trabalhos como deve ser só tem um caminho que é não os apresentar."

Em causa estava um projecto de 1987 em que nalgumas peças se falava na construção de uma moradia a construir na Quinta dos Bentos, na Guarda, e noutras se falava em duas moradias geminadas (ver outro texto nestas páginas). Por outro lado, as plantas apresentadas e assinadas pelo projectista não indicavam sequer o local da obra a construir.

No segundo processo em que foi advertido pela vereação tratava-se de uma moradia a erguer em Sequeira, junto à Guarda, em que a repartição técnica da câmara emitiu informações desfavoráveis ao projecto e às suas posteriores alterações, qualificando algumas delas como "um absurdo". Face à insistência do proprietário e do projectista, a mesma repartição propôs, em Março de 1990, e Abílio Curto concordou, que "deve alertar-se o requerente de que se porventura estiver em obra a executar estas alterações se sujeita a um processo de coimas e o técnico a ser chamado à responsabilidade".

Apesar desta ameaça, as alterações indeferidas foram construídas sem que o responsável pela obra se opusesse, o que levou uma das arquitectas da repartição, também já falecida, a propor a demolição da ampliação ilegal da moradia e a escrever que "o técnico deve ser chamado à responsabilidade (o que não será a primeira vez, aliás) e deve ser seriamente alertado, pois, como deputado na Assembleia da República e residente na Covilhã, não vejo como poderá visitar as obras que dirige - o que, à luz do novo decreto 19/90, lhe poderá vir a acarretar uma pena de suspensão por falta de assistência às obras e de assinatura da folha de obra".

Paralelamente a construção foi embargada, a parte ilegal foi demolida pelo proprietário, e a câmara, em ofício assinado por Abílio Curto em Dezembro de 1990, notificou o proprietário, sem qualquer justificação, "para apresentar novo termo de responsabilidade [leia-se: de outro técnico] após o que se procederá ao desembargo da obra" - tal como aconteceu de imediato.

Num terceiro processo, relativo à construção de uma moradia na aldeia de Cavadoude, cujo projecto e direcção de obra têm o nome José Sócrates, não se encontra qualquer crítica ao seu trabalho, mas um despacho de um responsável camarário datado de Janeiro de 1991 determina, também sem qualquer fundamentação, que "é necessário notificar o requerente de que é preciso a declaração de responsabilidade de outro técnico".

Afastamento sem razões conhecidas




O PÚBLICO questionou António Patrício, colega de curso e amigo de José Sócrates, enquanto autor da informação que determinou a exclusão do actual primeiro-ministro da direcção de uma obra particular em 1991, mas o actual director regional adjunto de Agricultura do Centro não encontrou uma explicação concreta. "Havia situações em que o técnico desaparecia, ou em que alguma coisa não estava a correr bem e nós próprios tomávamos a iniciativa de mandar substituí-lo, mas nesses casos não faço ideia do que aconteceu", afirmou António Patrício. 



Já o actual presidente da autarquia, Joaquim Valente, também colega de curso e amigo de Sócrates, informou que a documentação existente na câmara não permite explicar o que se passou, nomeadamente se a exclusão se deveu ou não ao facto de aquele técnico ser responsável por demasiadas obras em simultâneo. 

De acordo com um regulamento aprovado pela câmara em 1987, tinha de haver na sua secretaria uma "relação das obras executadas ou em execução" sob a responsabilidade de cada técnico ali inscrito para apresentar projectos e dirigir obras, sendo que nenhum deles poderia "assumir a responsabilidade simultânea de mais de 24 obras" no concelho. Todavia, segundo Joaquim Valente, "não havia processos individuais constituídos, pelo que, por recurso a esta via, não é possível determinar o número de projectos subscritos pelos técnicos".

Embora afirme que tais processos individuais não existiam, o autarca garante, sem fundamentar essa afirmação, que "não foi proposta qualquer sanção" contra Sócrates na câmara, situação que, a ter-se verificado, poderia também explicar o seu afastamento da direcção das obras. Abílio Curto, presidente da câmara à data dos factos, nunca esteve disponível para falar ao PÚBLICO.J.A.C.

Deputado eleito desde 1987


Projectos assinados quando estava em exclusividade em São Bento são pelo menos 21


José Sócrates subscreveu pelo menos 21 projectos entre Outubro de 1988, data em que se tornou deputado em regime de dedicação exclusiva, auferindo o subsídio correspondente, e o final de 1990, responsabilizando-se também pela correcta execução das respectivas obras. 
Contactado pelo PÚBLICO em finais de 2007, acerca da sua actividade profisssional na Guarda depois de ser eleito deputado em Julho de 1987 e da compatibilidade entre essa actividade e a fruição do subsídio de dedicação exclusiva na Assembleia da República, o primeiro-ministro, face aos quatro casos que lhe foram apresentados, declarou apenas que ela se tornou "muito residual, resumindo-se à intervenção pontual em pequenos projectos a pedido de amigos, sem remuneração". Este último aspecto, como então se referiu, é aliás irrelevante, uma vez que o pagamento do subsídio de exclusividade implicava a "impossibilidade legal [salvo raras excepções previstas na lei] de desempenho de qualquer actividade profissional, pública ou privada, incluindo o exer- cício de profissão liberal", sem distinção entre o facto de ser ou não remunerada, conforme concluiu um parecer da Procuradoria-Geral da República homologado pela Assembleia da República em 1992.
Entretanto, na sequência de um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, depois confirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça e pe- lo Tribunal Constitucional, que obrigou a Câmara da Guarda a abrir-lhe os seus arquivos, o PÚBLICO localizou nos últimos meses mais 17 projectos assinados pelo então deputado naquele período.
Embora estes dados possam não retratar toda a realidade, uma vez que os processos não estão numerados e nada garante que lá estejam todos aqueles em que interveio, ao contrário de se ter tornado "muito residual", a actividade privada de José Sócrates ter-se-á intensificado a partir de 1987. Com efeito, encontram-se no arquivo quatro projectos da sua responsabilidade de 1985; oito de 1986; três de 1987; nove de 1988 (sete dos quais posteriores à data em que pas- sou a receber o subsídio de dedicação exclusiva); nove de 1989 e cinco de 1990.
Perante estes números, que reforçam os indícios de que o então deputado violou durante vários anos o regime de dedicação exclusiva de que beneficiou em São Bento, o PÚBLICO voltou a questionar o primeiro-ministro, mas não obteve qualquer resposta.
Para além de os factos apurados não confirmarem a redução e o carácter "muito residual" da sua activida- de na Guarda, a natureza de alguns projectos e a identidade dos donos das obras também não apontam para a sua gratuitidade: em três casos trata-se de prédios de três pisos e seis fogos pertencentes a importantes industriais da construção civil; num outro são dois blocos geminados de quatro pisos, de uma cooperativa de habitação; e um último é um pavilhão industrial de grandes dimensões.J.A.C.






O silêncio de Sócrates

Questionado sobre se violou ou não o regime de dedicação exclusiva de que beneficiou na Assembleia da República entre 15 de Outubro de 1988 (data em que esse regime foi criado) e 31 de Dezembro de 1991, recebendo o respectivo subsídio - com excepção do mês de Março de 1989, em que declarou ter recebido "95 contos" pela sua actividade privada -, o primeiro-ministro informou, através de um dos seus assessores, que não responderia a essa pergunta nem às restantes dez que lhe foram dirigidas, há dois meses, sobre aspectos da sua vida profissional referidos nestas páginas.





Histórias de lapsos, enganos e clientes que nunca o foram

Por José António Cerejo


Supostos donos de lotes vieram depois desmentir propriedade. Um disse que foi "lapso" do projectista. O outro diz agora que as suas assinaturas foram falsificadas

José Sócrates subscreveu em 1987 o projecto de uma moradia que afinal eram duas geminadas e em 1988 responsabilizou-se pela sua execução. Em toda a documentação entregue declarou que o dono da obra e seu cliente era um munícipe chamado José Maria dos Santos Martins. No fim do ano passado, porém, este disse ao PÚBLICO que nunca teve ne- nhuma moradia e que nunca falou com Sócrates na vida. Esta é uma das situações pouco claras em que o então deputado se envolveu na Guarda e que estão à vista no arquivo da câmara local.


A fazer fé no processo camarário, José Maria Martins requereu, e está lá a sua assinatura em diversos documentos, o licenciamento de uma moradia projectada por Sócrates na Quinta dos Bentos, naquela cidade. No meio das críticas dos serviços camarários, que levaram o executivo municipal a aprovar uma advertência ao projectista em Maio de 1987 (ver texto na pág. 4), foram ali aprovadas duas moradias geminadas e não uma, como previa o loteamento. Em 1989, já com outro projectista, acabaram por ser aprovados para o mesmo local quatro pisos com seis habitações.

Nessa altura, após requerimento assinado por José Maria Martins, a titularidade do processo passou para o nome de Júlio dos Santos Fernandes, então o maior construtor civil da Guarda. Motivo invocado para o pedido de Martins: dificuldades económicas que não lhe permitiram proceder à "escrituração do lote". Sucede que a lei era taxativa quanto à obrigatoriedade que o requerente tinha de fazer prova - que não lhe fez nem lhe foi pedida - da propriedade do lote quando entregou o projecto.
Confrontado em Janeiro com cópias dos documentos por ele assinados e com as referências que Sócrates lhe faz no termo de responsabilidade e noutras peças do processo, José Maria Martins não hesitou: "Isso é impossível. Essas assinaturas não são minhas e eu nunca fui dono de nenhum lote para construção. Tinha acabado de sair da tropa e não tinha um tostão". 
Sem querer acreditar no que via, garantiu nunca ter falado com Sócrates. Mas quando ouviu o nome de Júlio dos Santos Fernandes o mistério começou a dissipar-se. "Nessa altura trabalhei para a firma dele como empregado administrativo, mas nunca ninguém me falou em nada, nem eu assinei esses papéis." José Martins adiantou que em 1989, quando alguém terá falsificado a sua assinatura no pedido de averbamento em nome do antigo patrão - que está incontactável por razões de saúde - "já tinha saído da empresa há mais de um ano". 

Projecto "não exequível"
Noutro caso, em Fevereiro de 1989, já em regime de dedicação exclusiva em São Bento, José Sócrates assinou o projecto e responsabilizou-se pela construção de um prédio com seis fogos que o seu cliente Adelino dos Anjos Gonçalves queria erguer em Guarda-Gare. Adelino Gonçalves, que o PÚBLICO também não conseguiu contactar, assinou os requerimentos necessários e o projecto, subscrito por Sócrates, foi aprovado em Abril desse ano, depois de feitas as alterações impostas pela câmara. Na apreciação feita à sua versão inicial, os técnicos camarários escreveram que "o telhado está incorrectamente desenhado e não é exequível em obra"; "as varandas não estão em esquadria"; "as marquises do rés-do-chão devem ser eliminadas porque estão muito baixas em relação ao solo" e ocupam terreno "que fica para lá da área de implantação aprovada".
Uma vez alterado e aprovado o projecto, António da Silva Correia, também um conhecido empresário de construção do concelho, pediu à câmara o averbamento em seu nome do projecto aprovado a Adelino Gonçalves, juntando escritura que provava ser ele o dono do lote. Chamado a explicar-se, Adelino Gonçalves dirigiu um requerimento à autarquia em que pede igualmente o averbamento em nome do empresário, "em virtude de ter havido lapso por parte do projectista, uma vez que o terreno e respectiva construção é propriedade de António da Silva Correia".
Ouvido pelo PÚBLICO, António Correia mostrou-se surpreendido por ter sido Sócrates o autor desse projecto, uma vez que sempre trabalhou com "um desenhador da câmara chamado Costa", e afirmando nunca ter percebido "por que é que os papéis estavam em nome do Adelino". Segundo expli- cou, este era um subempreiteiro que às vezes trabalhava para ele, mas nunca foi dono do lote.

Uma casa fora do sítio
Um último caso pouco claro em que surge o nome do primeiro-ministro prende-se com a construção de um armazém agrícola, que depois foi transformado em moradia na aldeia de Faia. O projecto do armazém, a que Sócrates chamou moradia nas peças que assinou, remonta a 1984, mas o da habitação, concebida por cima daquele pelo mesmo autor, é de Setembro de 1988. 
A originalidade desta obra está no facto de a câmara a ter aprovado em 1985, na condição de a mesma ter um pé-direito (altura entre o chão e a placa) de armazém (três metros), que não tinha no projecto, e recuar um metro em relação ao local assinalado na planta de implantação feita por Sócrates. O objectivo desse recuo era que a construção ficasse alinhada com uma moradia existente um pouco mais acima e que era a única da rua. 
Face a uma queixa da junta de freguesia apresentada quando as paredes já estavam feitas, o engenheiro-chefe da repartição técnica deslocou-se ao local e constatou que o armazém, em vez de ter recuado um metro para alinhar com a casa, estava a ser construído, sob a responsabilidade de Sócrates, com "um desfasamento de seis metros" em relação a ela. Ou seja: tinha sido implantado cinco metros à frente do local apontado no projecto e seis em relação ao que fora aprovado. 
Embargados os trabalhos, tudo acabou em bem: a junta declarou que a situação, afinal, não lesava o interesse público e a câmara legalizou a obra sem qualquer chamada de atenção ao responsável pela execução. Três anos depois, Sócrates projectou a moradia em cima do armazém e a construção, sob a sua responsabilidade, foi feita em 1989.

3 comentários:

Anónimo disse...

Olá Sr. Leixão:
Isto é o mesmo que a camara de Matosinhos, não assina o director municipal Luis miranda por não poder porque sua esposa Ana Paula Petiz, é autora do projecto, mas assina o seu sobordinado, mesmo quie algo esteja mal, porque senão no fim do ano não tem classificação. Assim vai correndo este malfadado Portugal, e nós vamos aguentando com isto tudo.
Um abraço,
Um Matosinhense atento

Anónimo disse...

O primeiro Ministro tem doênça alzheimer.Precisa de tratamentos paliativos... Não há exemplo de tantas falhas!
Um Matosinhense Com opinião.

Rui Huet Viana Jorge disse...

Pois correu com o "ING", mas o Curto, ex presidiário já o veio defender.porra que é preciso ter azar com amigos assim tão distintos