Publicado por helenafmatos
A cada artigo sobre o Taguspark ou mais propriamente sobre a associação entre Rui Pedro Soares, na qualidade de administrador executivo da PT, Armando Vara, enquanto vice-presidente da CGD, e Isaltino Morais, presidente da Câmara de Oeiras, tornou-se-me cada vez mais presente este verso de Camões: “Errei todo o discurso de meus anos“. Porquê? Porque estou cansada de viver do outro lado. Do lado daqueles que têm de sustentar isto. Do lado daqueles que põem o dinheiro e pagam os consultores, os estudos e as cerimónias para que, como se ficou a saber ontem pelo artigo de José António Cerejo, Isaltino Morais possa ter afiançado ao então presidente da TagusPark, um quadro da mesma Câmara Municipal de Oeiras, que, se antecipasse voluntariamente o termo do seu mandato, seriam tanto ele como os vogais compensados com “indemnizações bastante favoráveis“.
Até à passada semana eu teria reagido a isto muito papalvamente perguntando-me, e quiçá perguntando neste espaço do PÚBLICO, quem pagaria essas indemnizações e mais uma vez faria figura de bota-abaixista, liberal e profundamente ignorante. Pois agora isso acabou. Resolvi que quero fazer parte desse conglomerado político-económico das empresas públicas e participadas pelo Estado. As ligações partidário-empresariais daquelas pessoas e a sua concepção do poder político como a de um facilitador para o exercício da sua particularíssima vocação empresarial, sem conta nem risco, que antes me teriam chocado, agora surgem-me como a luz no fundo do túnel.
Olho com a admiração que leva aqueles fans histéricos à entradas das estrelas na noite dos Óscares para essa gente que passa do telemarketing para o carro de administrador e que faz negócios e negoceia contrapartidas em que nunca arrisca nada de seu porque no derradeiro momento lá estará o contribuinte a passar o cheque. O que me levou a tão drástica decisão não foi a expressão “indemnizações bastante favoráveis”, embora se os leitores quiserem concluir tal coisa também não me pareça mal. Bem vistas as coisas, o que eu passei a querer é um desses cargos em que, tal como aconteceu no TagusPark, o final dos mandatos dos administradores foi antecipado – custou meio milhão de euros em indemnizações – para entrarem outras pessoas que provavelmente também terão de antecipar o final dos seus mandatos por razões igualmente vagas e serem, por sua vez, elas mesmas indemnizadas também e assim sucessivamente.
O detonador desta minha epifania foi o Plano de Estabilidade e Crescimento, PEC de seu nome. Desde já me recuso a ficar no sítio do costume quando o dito PEC chegar, ou seja, no lado daqueles que trabalham por conta própria e são acusados de nunca ganharem o suficiente para pagar os impostos necessários para sustentar o Estado-empresário, o Estado promotor de novas atitudes, o Estado dinamizador cultural, o Estado educador, o Estado sonhador, o Estado comunicador, enfim o Estado que for necessário ao sustento dessa oligarquia que dantes me repugnava mas onde agora solicito o direito de admissão.
Por outro lado, há que ser pragmático: este território das empresas municipais, das entidades públicas empresariais e participadas pelo Estado, dos institutos não sei de quê e das unidades de negócio é de facto o único que tem o futuro assegurado. E eu, como sou optimista, acho que ainda terei alguns anos de vida pela frente. Logo, resolvi mudar-me de armas e bagagens para o sector empresarial do Estado. Por exemplo, para a Parque Escolar, a qual irá receber os edifícios escolares até agora propriedade do Ministério da Educação. A pessoa que eu fui não só teria muitas dúvidas sobre o interesse público desta operação como defenderia que o Estado atribuísse o valor que gasta na educação de cada criança à escola, pública ou privada, escolhida pelas respectivas famílias. A pessoa que eu fui seria mais uma vez insultada pela oligarquia partidário-empresarial por defender o que dizem ser o “ataque à escola pública”. Pois a pessoa que eu agora sou desde já se declara disponível para integrar essa entidade pública empresarial e, sempre em nome da escola pública, ir contratando por ajuste directo as empresas que fazem as obras nas escolas. E naturalmente ir ganhando o suficiente para poder colocar os meus filhos no ensino privado e livrá-los dos projectos pedagógicos transversais com muita motivação, integração e dinamização que, esses sim, destruíram o ensino público.
Confesso, contudo, que houve ainda um terceiro elemento a decidir-me a dar tal passo. Talvez por deformação académica e profissional, sempre dei muita importância às palavras e quase sem eu dar por isso fui-me deixando seduzir pelo ideolecto desse círculo mágico em que nunca se percebe onde acaba o político e começa o público e onde acaba o público e começa o privado. Por exemplo, nos casos onde os papalvos como eu era até há bem poucos dias falam de tráfico de influências, os membros do círculo só vêem decisões fundamentais e inquestionavelmente justificadas, como aconteceu no Taguspark, pela necessidade de encontrar “uma solução de gestão em completa consonância com a CMO[Câmara Municipal de Oeiras]“. Perfeito, não é? E o que dizer do conhecimento formal versus o conhecimento informal? Nem aquela poesia barroca em que o sujeito lírico provava uma coisa e o seu contrário atingiu este patamar de jogo conceptual.
Aqui chegados ou mais propriamente aqui chegada eu e perante o inexorável de tudo isto e sobretudo face ao ar satisfeitíssimo e próspero de toda aquela gente que vive lá desse outro lado, só posso concluir que Camões tinha razão: “Errei todo o discurso de meus anos“.
*PÚBLICO
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