Gostava de ter escrito isto:
De como o espírito positivo dá cabo do ímpeto reformista – argumentos para não se votar nem no Partido da Laurinda Alves nem no Partido do José Sócrates
Diz-se que é preciso sermos mais positivos e que não basta sermos críticos para que a realidade seja transformada. Traduzindo em votos, isto significaria que, ao registo crítico de Louçã e Jerónimo, deveríamos preferir o espírito positivo de Sócrates e de uma modernidade que brilha e rebrilha contra a imagem mais baça de uma Ferreira Leite tida como impávida, inerte, imóvel, imbecil.
De acordo com esta conversa do espírito positivo, enquanto Louçã e Jerónimo se limitariam a pregar o quanto pior melhor, de modo a anteciparem o dia da revolução, Sócrates procuraria passo a passo, grão a grão, ir melhorando o actual estado de coisas, gerindo o possível – e isto seria uma esquerda moderna e democrática.
O problema em tudo isto está naquilo que se entende por possível.
É que a política não é a simples gestão do possível mas sim uma luta pelo que é e deixa de ser possível e pelo que se entende como possível, impossível, necessário, inevitável. Isto mesmo deveria ficar à vista de toda e qualquer esquerda, mais não fosse por obra e graça da actual crise, que interrompe o que era inevitável e introduz o aleatório na ordem do previsível.
Quem diria, há um ano atrás, que um dos pontos fundamentais da actual campanha seriam as nacionalizações ou o reforço dos serviços públicos?
Para mim é claro que a escolha a fazer nas próximas eleições não é entre a reforma de uns e a revolução de outros.
Quando Sócrates afirma que Louçã é radical e que Jerónimo é utópico, a sua afirmação diz tanto acerca do revolucionarismo de BE e PCP como diz acerca dos limites do ímpeto reformista do PS.
A escolha a fazer nas próximas eleições é sim entre uma esquerda que propõe reformas que Sócrates considera serem revolucionárias – e não digo que não o sejam, limito-me a não me opor a reformas revolucionárias – e aquilo que o próprio Sócrates considera ser do domínio do possível.
A questão é sabermos se o possível do PS de Sócrates chega e basta e se o PS pode ser abandonado a si próprio, como foi ao longo destes últimos quatro anos de maioria absoluta.
Deixo dois exemplos de matérias onde o PS tem reclamado créditos reformistas.
Primeiro exemplo, a questão do aborto. É verdade que foi graças ao PS, ao PCP e ao BE, e a muitos outros e outras que estão fora do quadro partidário, que a despenalização da IVG finalmente ocorreu – mas importa não esquecer que foi graças ao PS que ela não sucedeu anteriormente.
Outro exemplo: será graças ao PS (pelo menos à maioria dos seus deputados), ao PCP e ao BE que o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo poderá vir a ser reconhecido, mas é graças ao PS que ele ainda não o é. Dou estes exemplos mas não pretendo provar, através deles, que o PS de hoje tenha menos mérito nestas conquistas do que têm PCP e BE. Em política, as vitórias morais contam e devem ser distribuídas por tudo e todos que delas se reclamem.
Dou os exemplos para mostrar, isso sim, que no momento em que for votar convém ter em conta que o reformismo do PS de hoje tende a ser aquilo que o PS de ontem classificara como radicalismo de PCP e BE.
O reformismo do PS será tanto maior quanto maior for a força eleitoral de PCP e BE – como mostraram as europeias, não há melhor forma de levar o PS a tentar uma viragem à esquerda (por mais tímida que seja) do que fortalecer PCP e BE. É evidente que as reformas por que o PS hoje reclama alguns créditos à esquerda seriam impossíveis sem a força de PCP e BE.
A elasticidade – digamos assim – dos posicionamentos políticos do PS não deve levar a que os seus dirigentes sejam objecto de um juízo de carácter, como é frequente suceder à esquerda; a elasticidade assiste à generalidade dos agrupamentos político-partidários e é o fruto das andanças de uma coisa simples a que se pode chamar correlação de forças eleitorais, de tal modo que PCP e BE – também eles – fazem hoje propostas que ontem não faziam ou que não faziam de forma tão explícita.
Não se trata, em nenhum destes casos, PS, BE ou PCP, de uma questão de maior ou menor firmeza, mas sim de percebermos que as posições políticas não sucedem fora da história.
Mas, atenção, é também aqui que chega o ponto mais importante: o PS farta-se de dizer que BE e PCP devem viver com os pés assentes na terra e que devem fazer propostas políticas condizentes com os tempos que correm. Este lugar comum dos apoiantes de Sócrates arrisca-se, no entanto, a repetir simplesmente críticas de natureza conservadora dirigidas contra todo e qualquer projecto político de transformação, seja este de natureza reformista ou revolucionária.
Dizer que a política não sucede fora da história não nos deve obrigar a ser fiéis ao conservadorismo subjacente ao papão anti-comunista segundo o qual toda a proposta política de mudança é um gesto de natureza ditatorial e de engenharia social, papão que nesta campanha tem sido alimentado de forma tão perniciosa quer pelo PS quer pela direita.
Dizer que a política sucede na história pode ser um acto anti-conservador, na medida em que signifique dizer que a história e a política são terreno de conflito e não de ordem, sendo justamente a hostilidade do PS ao conflito que faz com que a sua crítica a PCP e BE se limite ao conservadorismo mais rude.
Pelo contrário, a maior firmeza político-ideológica de PCP e BE não deriva da força de carácter absoluta dos seus dirigentes, mas do lugar relativo em que se situam ante a realidade – e este lugar é o lugar de quem toma partido num conflito, de quem não é equidistante no conflito entre patrão e trabalhador, de quem não é equidistante no conflito entre fortes e fracos.
É verdade que PCP e BE se têm mantido mais firmes do que o PS na defesa de algumas posições e que o fizeram mesmo quando o ar dos tempos não lhes era muito favorável – a crítica do neoliberalismo, hoje na boca do PS, é a crítica que o PS de ontem classificava como sinal de radicalismo e totalitarismo económicos de uma esquerda que considerava ultrapassada e simplesmente estalinista; mas PCP e BE mantiveram-se fiéis a esta crítica porque, a partir do ponto de vista dos protagonistas das lutas sociais dos últimos anos, o neoliberalismo foi uma realidade que interessava destruir e nunca uma realidade que se poderia simplesmente aceitar como inevitabilidade histórica. O ponto de vista de PCP e BE não é apenas o ponto de vista científico que objectiva a sociedade em prol de políticas consensuais que visam a harmonia social, mas é também o ponto de vista crítico que avança políticas alternativas que têm os pés assentes na mesma terra em que se encontram sujeitos que lutam contra outros sujeitos.
Chamem a isto o populismo de quem toma partido pelos pobres, o apelo a que os fracos intensifiquem a luta de classes, a persistência de uma cultura de protesto ou a importância de um sindicalismo vivo e actuante para o futuro desenvolvimento económico do país – em qualquer dos casos, estamos a falar da importância da crítica e da recusa da equidistância.
Por isso, o que nos parecer ser a menor firmeza do PS – digo-o e repito-o porque estou ciente que palavras como acanhamento, coerência ou firmeza traem ao que venho – deve ser lido, isso sim, como sinal de um partido que não tem uma relação problemática com a realidade, porque é um partido obcecado com o projecto de representar o todo – a unidade nacional, o interesse geral, a sociedade – e que por isso se recusa a tomar partido.
Só quem toma partido é que faz um uso da crítica que a torna capaz de problematizar a realidade e é através das perguntas para as quais nem sempre se tem resposta que alguma vez se poderá chegar a uma resposta diferente das que existem já hoje oficializadas por comentadores, analistas, cientistas políticos e outros que tais.
Não há vontade de transformação – reformista ou revolucionária – sem uma relação problemática com a realidade. A constante excitação do PS com tudo o que é “pensamento positivo”, “diálogo”, “consenso”, “negociação”, “avançar”, “concertação”, “construir”, assim como a correspondente desvalorização pelo PS de tudo o que soe a “resistência”, “luta”, “conflito”, “crítica”, “protesto”, limita os horizontes políticos do PS ao reino pequeno e tacanho do óbvio.
Porque desvaloriza o que é negativo, o PS só toma como realista aquilo que é evidente e o evidente é o que continua e é incontornável e não o que é transformável e reformável; o evidente é a persistência do que tem acontecido, o simples peso da tradição e do que se herda.
Uma relação assim tão leviana e pacífica com a realidade impede a apreensão e adesão a qualquer sentido de mudança da realidade.
Como diz um futuro deputado do PS, que provavelmente nem reparou no significado do que estava a dizer, quem governa não pode denunciar. Ou seja, é deixar andar, é deixar-se andar.
O PS desvaloriza a utopia e a resistência e limita-se ao que se vê, nunca percebendo que há sempre mais do que uma forma de ver a realidade e que o que é impossível para uns chega a ser necessário para outros. Para muitos apoiantes de Sócrates é impossível acabar com a exploração laboral, para outras pessoas isso é simplesmente necessário.
A realidade não é um dado mas é um problema – para o bem e para o mal – e só uma esquerda que tenha problemas com a realidade é que merece o nosso voto. Se é para cultivar a paz social e a harmonia entre os seres humanos, rejeitar o conflito social e fazer apelos à unidade nacional e ao avanço de Portugal e acabarmos todos a regar as florzinhas do jardim e dar milho aos pombos no reino do contentamento, então mais vale votar no partido da Laurinda Alves do que no partido de José Sócrates.
O meu problema com o PS não reside no facto deste pretender ser, por natureza, um partido reformista; mas sim no facto do seu reformismo ser a tal ponto acanhado que conviria antes perguntar se é justificado falarmos de natureza reformista.
(permiti-me subdividir os parágrafos do texto)
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